
Todo mundo sabe que, ao mesmo tempo que a Disney faz muito sucesso, ela também guarda segredos bem sombrios. Até mesmo o próprio Mickey Mouse tem detalhes pouco conhecidos do público. Mas entre todos os filmes da Disney, apenas um ganhou status de “obra fantasma”. Não está no Disney+, nunca ganhou relançamento moderno e virou praticamente um segredo corporativo. Trata-se de A Canção do Sul, longa que, em plena Semana da Consciência Negra, merece ser lembrado como exemplo do que NÃO fazer.
Lançado em 1946, o filme ocupa essa posição desconfortável e tem um status quase que de lenda urbana. Embora tenha marcado época ao unir live-action e animação em uma técnica inovadora, o filme se tornou um dos casos mais emblemáticos da história do cinema quando o assunto é racismo, memórias traumáticas e revisionismo cultural.

Mesmo décadas depois, o estúdio ainda tenta fazer o público esquecer sua existência. Só que o mundo não esquece tão facilmente — principalmente quando uma produção tão problemática moldou parte do imaginário infantil durante tanto tempo.
O polêmico enredo que parece inocente, mas romantiza um período de violência
O filme acompanha o garoto Johnny e sua aproximação com Tio Remus, um homem negro que trabalha na fazenda da família do menino após o fim da Guerra Civil norte-americana. Mas o detalhe central — e o mais problemático — é que A Canção do Sul retrata o Sul dos Estados Unidos pós-escravidão como um lugar pacífico, harmônico e quase idílico, onde ex-escravizados vivem felizes e satisfeitos.

Além disso, afigura de Tio Remus concentra a maior parte das críticas. O personagem segue um estereótipo muito comum na cultura americana: o “homem negro sábio, gentil e submisso”, sempre disposto a confortar brancos, mesmo vivendo em situação de subalternidade. Esse arquétipo, hoje amplamente reconhecido como racista, moldou representações negativas de pessoas negras no cinema por décadas.
Ao mesmo tempo, o filme ignora por completo tensões sociais, evita mencionar a violência contra negros no Sul e cria um ambiente artificialmente alegre, onde as relações entre brancos e negros parecem livres de exploração.

“Ah, mas esse é um filme para crianças!”, muitos podem se questionar. Pois bem, a narrativa infantiliza a experiência dos personagens negros. Isso porque ele ignora a brutalidade histórica do período, quando comunidades negras enfrentavam violência, segregação e pobreza extrema. Assim, essa romantização cria a ilusão de que escravidão e pós-escravidão foram momentos suaves. Para pesquisadores, isso produz um efeito perigoso: transforma trauma histórico em entretenimento infantil.
Por que a Disney tenta “enterrar” A Canção do Sul desde os anos 1980?
Mesmo na época de seu lançamento, críticos já percebiam o problema. No entanto, Hollywood ainda operava sob códigos raciais rígidos, e a Disney apostava em um público que aceitava a visão açucarada que o estúdio oferecia. Mas foram somente décadas depois que a empresa percebeu a gravidade da situação antes mesmo do debate contemporâneo sobre representatividade.

Nos anos 1970 e 1980, movimentos por direitos civis pressionaram o estúdio a relançar menos o filme. Quando a discussão racial ganhou força em Hollywood, A Canção do Sul passou a ser visto como uma mancha na história da marca. A Disney, então, tomou decisões estratégicas para afastar o título da mente do público.
Para começar, ela não lançou o filme em vídeo/dvd nos EUA, mesmo quando todos os outros clássicos recebiam edições especiais. Além disso, o estúdio não disponibilizou em plataformas digitais, inclusive no Disney+. A marca também evita mencionar o filme em materiais institucionais, fazendo apenas referências técnicas em arquivos históricos. Por fim, a Disney transformou a atração Splash Mountain, que usava elementos do filme, em uma nova atração inspirada em A Princesa e o Sapo.
Proibido, polêmico, mas ainda assim, importante
Mesmo que a Disney evite falar sobre o filme, uma parte dele continua viva até hoje, ainda que seja na memória de quem o assistiu em reprises na TV, por exemplo. Aqui no Brasil, ele foi exibido várias vezes em canais como o SBT nos anos 1980 e 1990.
A música “Zip-a-Dee-Doo-Dah” venceu o Oscar de 1947 e entrou para a cultura pop mundial. A estética colorida da animação influenciou várias produções posteriores e ajudou a consolidar a técnica que mistura atores com personagens animados, como podemos ver em Uma Cilada para Roger Rabbit ou Space Jam, por exemplo.
Sendo assim, o filme virou tabu, mas também virou estudo. E, enquanto o estúdio tenta silenciar sua existência, pesquisadores, fãs e críticos continuam trazendo o título à tona. Mas não para celebrá-lo, e sim para entender como ele revela o lado mais complexo, contraditório e humano da cultura pop.
Você já assistiu a esse filme?
Fotos e vídeos: Reprodução





